terça-feira, 7 de janeiro de 2020

A SUAVIDADE ASSASSINA DO FANTASMA VERMELHO


"Foi um dos mais elegantes avançados que alguma vez existiram: Zoran Filipovic. Um esteta que voava, ignorando o princípio de Newton, um predador da grande área, etéreo, súbito e fatal. Tive a sorte de ser seu amigo depois do tempo em que o via ao vivo e a cores, quase todas as semanas, espalhando pétalas no caminho dos golos.

Zoran Filipovic esteve na Luz, e cada regresso dele à Luz é sempre boa notícia.
Para mim e para a malta dos Olivais-Sul que passava a vida em redor do futebol desde meados dos ano-70, houve poucos jogadores como Filipovic.
Era um esteta. Jogador bonito, dizia-se.
Um miúdo lá do bairro atrapalhava-se com o nome quando gritava os seus golos: 'Filipobiti!'
A gente ria-se, mas o assunto era sério. Muito sério.
O tempo passou, e tornei-me amigo do Filipovic, como também fiquei amigo do Humberto Coelho, do Pietra, do Veloso, dos Bastos Lopes (I e II), do Chalana, do Shéu, do Nené, do Carlos Manuel, do José Luís, do Bento, do Alves, enfim, de toda essa equipa maravilhosa que devolveu o Benfica às glórias europeias e disputou aquela final fantástica com o Anderlecht, a dois jogos.
Alguns deles amigos fortes. Amigos de conversas infinitas.
Uns dez anos depois da final da Taça UEFA, o Benfica viajou para São Paulo. Um torneio da Parmalat, o patrocinador da altura.
Viagem triste. Derrotas feias.
Eu estava lá como enviado-especial de A Bola. O Filipovic também. Era um dos adjuntos de Artur Jorge. Outro amigo antigo.
Ficávamos a falar, à noite, no hotel que ficava na Av. 9 de Julho, perto do edifício da Família Mancini e da estação de Anhangabáu. E ele contava histórias da sua vida em Titograd, no Montenegro, e dos seus jogos no Estrela Vermelha, no Brugge e no Benfica.
Em seguida eu partia para as madrugadas do bairro do Bixiga e para as festas de Nossa Senhora de Aquiropita e para os bares de chorinho até nascer o sol.

Desafiando a lei da gravidade
Nasci num tempo que já não me permitiu ver a forma como José Águas desafiava o princípio de Newton. Recusava-se a aceitar que matéria atraísse matéria na razão directa das massas e no inverso do quadrado das distâncias. Por isso voava. Voava para golos perfeitos que guardei na lembrança das repetições de imagens a preto e branco.
Filipovic foi, para mim, a cores e ao vivo.
Também ele embirrava com a gravidade e deixava-se planar à espera da bola alta, sobre a cabeça dos defesas, um fantasma vermelho, suave, rápido, fatal.
Poucos alguma vez tiveram a elegância de Zoran Filipovic.
Lembro-me de golos e de golos e de golos. Os dois à Roma, no Estádio Olímpico. Assassino silencioso. Os romanos engolindo em silêncio a sua frustração, os passes precisos de João Alves, as fugas em contracurva do Chalana, as linhas rectas do José Luís. Era tudo bonito. E prático.
Sven-Goran Eriksson, outro bom amigo e Toni, meu velho irmão lá de Mogofores, ambos nós bairradinos.
Havia uma ideia. E sobre essa ideia havia a realidade. Uma das mais belas realidades que jamais se vestiram de encarnado.
Filipovic no meio de um ataque frenético, mistura de habilidades e contundência, sereno senhor da grande área na qual revolteava como se ele sozinho fosse um bando de andorinhas apontadas ao sul das balizas.
Ah! Poucos conseguiram ser tão etéreos. E tão letais ao mesmo tempo. Aquele nome afiado: Zoran. Zoran, O Magnífico, como se saído de um livro de Salgari, Corsário Vermelho ou coisa que o valha, companheiro de Sandokan, o Tigre da Malásia, senhor da Ilha de Mompracem.
Filipovic não se esquece. É impossível esquecer a sua passada importante, o seu remate de espadachim, o seu voo imponente ao encontro da bola, a mágica senhora das paixões. Se os golos são sempre bonitos, os dele eram ainda mais bonitos. Ficam para sempre pendurados como quadros de um pintor valioso na parede branca da minha memória."

Afonso de Melo, in A Bola

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