"Humberto Coelho cumpriu 70 anos. Companheiro, amigo, vi-o em momentos que não se repetem jogar como nenhum outro foi capaz. Vivi a seu lado momentos lindos e outros tristes. Homem diferente que sofreu ingratidões irreperáveis, e com ele a meu lado disse um dos adeuses mais sofridos da minha vida
O Humberto Coelho fez 70 anos, e, aqui para nós, é algo que não fez sentido nenhum. O Humberto, o Humberto que eu conheço há mais de 30 anos, não faz 70 anos porque continua a ser o central mais elegante que alguma vez vi jogar, Beckenbauer e tudo incluído, mesmo que tenham querido fazer dele o Beckenbauer português esquecendo-se de que o Beckenbauer fora, por sua vez, o Germano alemão.
Estive com o Humberto um pouco por todo o mundo, como certa vez no Mali, era ele seleccionador de Marrocos e tinha a equipa a fazer estágio num quartel militar, aliás, como o Carlos Queiroz, que estava lá na mesma altura, comandando a África do Sul. De cada vez que quiser fazer um esforço de memória, vou encontrar momentos da minha vida profissional com o Humberto, ele sempre solícito, sempre simpático, sempre pronto a ajudar, mesmo quando o tempo se evapora, como daquela vez em Londres, onde fomos ambos espiar a equipa da Inglaterra, em Wembley, frente à Croácia, Inglaterra que iria ser o primeiro adversário de Portugal no grupo da fase final do Europeu em 2000, Inglaterra que batemos num dos jogos mais brilhantes da existência da selecção nacional, em Eindhoven, mudando aquele 0-2 que caiu do céu aos supetões num 3-2 que poderia ter sido 4 ou 5-2.
Nunca ficaste para trás, companheiro!
O Humberto pode ter feito 70 anos, mas eu não aceito o facto com ligeireza. Para já, exijo retroactivamente que lhe sejam devolvidos momentos que ele tanto merece. A presença no Europeu de 1984, por exemplo. Ele, de longe, o melhor central português desses tempos, um dos melhores do mundo, traído de forma canalha em Moscovo, naquela derrota por 0-5 frente à União Soviética que nos fez ir de sofrimento em sofrimento até ao jogo da Luz, do penálti sobre o Chalana apontado pelo Jordão, e o Humberto na bancada, o joelho massacrado, o joelho tão massacrado, que não o deixou ir a França, ser o capitão da equipa que era, que não deixou atingir mais o nível excepcional que fazia dele enorme, um gigante que dominava a defesa, o meio-campo e até o ataque.
Vi-o em campo, tantas e tantas vezes. Vi-o desarmar adversários com a facilidade com que se rouba um doce a uma criança, mas vi, logo em seguida, mais do que isso: vi-o ir embora, bola no pé, avançando no terreno com a segurança dos sábios, com a imponência dos eleitos, trocar de movimentos com companheiros, rematando de longe com aquele seu pontapé colocado, normalmente em curva, metendo a bola junto ao ponto mais distante.
Vi-o dominar as alturas como um Mercúrio, de asas nos pés, elevando-se por entre defesas adversários, todo ele tão incomensuravelmente alto, que não se media em altura, media-se em altitude, como as montanhas.
Recordo-me de jogos atrás de jogos atrás de jogos: contra o Fortuna de Dusseldorf, contra Israel, contra a Roma, contra o Carl Zeisse, a partir do momento em que decidiu ser mais um avançado para impedir a eliminação impossível, contra o Bayern de Munique, contra a Escócia, contra a Áustria, e contra todos os adversários comuns de fim de semana, mesmo decidindo um jogo contra o FC Porto, no último minuto, rojando-se no chão como que para efectuar um carrinho que deu golo.
A injustiça fez-lhe a maldade de lhe tirar a Taça UEFA de 1983, que o Benfica deveria ter conquistado, porque era melhor, porque jogava melhor, porque tinha mais arte e mais talento. Honra ao Anderlecht, que soube ser a sombra negra de um percurso no qual os jogadores de Sven-Goran Eriksson perderam só um jogo e com essa derrota perderam tudo.
Humberto também camarada, também amigo. Horas de conversa, nem sempre em entrevistas, apenas conversas, com o seu gosto particular de contar piadas, de inventar anedotas, de desvendar partidas feitas aos velhos companheiros de equipa. Humberto colega, jogando na velha equipa de futebol de A Bola, o joelho amarrado, e ele sempre dando ordens, como em Issy-les-Molineux, em Paris, contra o L'Equipe de Platini e Rocheteau, e meses mais tarde no Estádio Nacional. Humberto da selecção de jornalistas, preparando-se para treinador a sério sendo treinador a brincar, inventando tácticas para levarmos para o Brasil, para Espanha, não poupava ninguém, aquilo era para dar o litro e mais um quartilho, e ponto final, quem não deixava a pele em campo, com ele não ia.
Humberto: 70 anos no decorrer dos meses que se multiplicam em mais meses. Um dia estávamos em Antuérpia, na véspera do sorteio para a fase eliminatória do Campeonato da Europa, jogado na Bélgica e na Holanda. Sentámo-nos durante o tempo que foi preciso para a entrevista fundamental. No final disse-lhe: 'Fico contente por ser contigo o último trabalho que faço para A Bola. Depois do que vou escrever a partir de agora, sobre esse nosso encontro, não voltarei a rabiscar uma linha para um jornal que me tratou de forma infame'. Demos um abraço forte. Ele sabia muito melhor do que eu o que era ver vítima da ingratidão. Foi camarada, como sempre. Estaremos sempre por aí. O futebol juntou-nos e continua a juntar-nos.
Humberto Coelho, amigo, companheiro. Estou no meu posto, capitão! Nunca saio do meu posto. Sempre que precisares, encontras-me aqui!"
Afonso de Melo, in O Benfica
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