"O futebol português nunca teve a tradição física de outros, tornando-se famoso pelo futebol aveludado, mas inconsequente. O remate de longe, solução habitual noutras ligas do Norte europeu, nunca teve a mesma preponderância em Portugal, num futebol cheio de anões tecnicistas onde a procura do golo se fazia por trocas rápidas rumo à baliza adversária.
Houve claras excepções à regra, a mais vincada Eusébio da Silva Ferreira, mas nunca o futebol luso se desenvolveu nesse sentido; antes guiou a evolução técnica do futebol europeu, que abandonou as concepções do kick ‘n rush e se aproximou das ideologias ibéricas, com a bola no solo e circulação sem pressas.
No caso do SL Benfica, houve inúmeros rematadores de renome – Eusébio, Vítor Baptista, Carlos Manuel, até… Calado –, mas que foram escasseando em número e qualidade diferenciada na execução dos remates exteriores, num futebol cada vez mais descodificado e com preferência por outro tipo de acabamento.
O remate exterior era tentado muito mais regularmente no futebol de outrora, assistindo-se hoje quase à segregração do remate de meia distância como último recurso ou pronta solução quando a criatividade se ausenta. Os especialistas de bola parada escasseiam também, o que leva a que se assista cada vez menos a lances antológicos à distâncias, momentos primordiais no espectáculo da bola.
Por exemplo, em 2018-2019, a Primeira Liga portuguesa teve apenas 86 golos de fora da área em… 826, o que representa 10,4%; esta temporada, o número é ainda menor, com apenas 38 em 621, até ao fecho da jornada 28ª, o que representa apenas 6% do total.
Nesta lista, são relembrados cinco dos melhores rematadores deste século do SL Benfica. Desde 2000 e com direito a taxa de golos apontados de fora da área em relação aos golos totais, apresentamos os seus perfis e algumas das suas melhores bombas. De fora ficou Jonas, pela proximidade temporal, mas os seus números em relação ao tema aqui ficam: dos 137 golos apontados de águia ao peito, o brasileiro converteu 15 de longe, ou seja, 11%.
1. 20 golos pelo Benfica – 9 de fora da área (45%)
Anderson Talisca (2014-2016) – O brasileiro faz do remate à distância uma das suas principais qualidades, o que aliado à técnica prodigiosa e força física o tornam num perigo iminente em cada ataque da sua equipa.
No Benfica, jogando atrás do ponta-de-lança ou como segundo médio, nunca desaproveitou oportunidades para meter em prática o seu gesto técnico predilecto, valendo-lhe golos de antologia que se tornaram na sua imagem de marca.
As atitudes menos próprias não apagam os momentos de extâse que os adeptos sentiam ao verem-no puxar atrás a canhota, com a certeza de que aquela bola acabaria no fundo das redes. Com outro perfil psicológico teria sido um dos grandes nomes do nosso futebol e do contexto europeu, mas a instabilidade levou-o a ligas periféricas, onde o seu talento avassalador para a prática futebolística nunca teve os estímulos que merecia.
2. 172 golos pelo Benfica – 26 de fora da área (15%)
Óscar Cardozo (2007-2014) – Sempre foi adepto do porte de arma, e argumentava que essa era a segurança de que a equipa precisava e que só ele lhe conseguia dar em campo. Se as soluções de assalto ao golo não resultavam, lá vinha ele de arma no pé, em tiroteios letais que faziam da sua canhota como a autora de homícidios horrendos a zeros aborrecidos no marcador.
E tanto golo houve que é natural não ter a taxa de aproveitamento de outros, mas o melhor marcador estrangeiro da História benfiquista tinha tanta empatia com as redes que preferia movimentar-se na grande área, onde o seu instinto guiava rumo à bola perdida a pedir golo.
Só em casos específicos de dificuldade em chegar ao último terço é que ele era obrigado a recorrer à sua meia distância, vindo atrás pegar na redondinha e, abusando da força, fazer o favor de fuzilar o guarda-redes contrário. Mas nem sempre era dessa forma bruta: em Enschede, num play-off da Champions frente ao FC Twente, parte em contra-ataque no seu jeito descuidado na condução. Soluções de passe eram poucas, sem ser Aimar na procura do espaço; Óscar vê Mihaylov a querer controlar a profundidade e, com todo o cuidado, coloca-a em arco rumo ao buraco da agulha no canto inferior direito. Golaço.
3. 64 golos pelo Benfica – 31 de fora da área (48,4%)
Simão Sabrosa (2001-2007) – Engane-se quem via no seu tamanho pouca apetência para as bombas exteriores. Bombas com asas que descreviam trajectórias muitas vezes curvílineas e que só poisavam nos ângulos superiores da baliza adversária.
É até hoje o mais eficaz em bolas paradas a seguir a Eusébio, e isso por si só diz muito da técnica prodigiosa de Simão no remate à baliza. Ao movimento preferido – a diagonal a partir da esquerda finalizada com um remate em arco ao segundo poste – adicionava outros momentos impulsivos de tiros certeiros com o peito do pé, que, não tendo naturalmente a mesma força de outros, resolvia com a direcção e o timming perfeitos.
O golo em Penafiel, em 2005-06, é a maior prova da sua versatilidade enquanto rematador: um dos poucos livres da sua carreira que embate na muralha defensiva é concluído com uma recarga em força que só termina no ângulo da baliza de Nuno Santos.
4. 14 golos pelo Benfica – 9 de fora da área (64%)
Petit (2002-2008) – O estilo aguerrido e pragmático das suas equipas é consequência das suas melhores qualidades enquanto jogador – não era um tecnicista, mas sabia perfeitamente como lidar com a redondinha, o que ajudava quando a recuperava vezes sem conta, fruto da sua garra e capacidade de tackle.
Na sua zona de acção era tudo dele, calcanhares incluídos, postura que lhe valeu a alcunha de sempre: Pitbull. E se, apesar da robustez física do seu jogo, sabia perfeitamente a melhor maneira de entregar e progredir com ela colada ao pé, era também muito competente no momento da finalização à distância, aplicando força e direcção certeiras nos seus remates.
Também não se fazia rogado de experimentar em jeito e até picado, como Landreau tão bem se deve lembrar. Nessa noite, Petit fez o segundo nos 3-1 do SL Benfica de Fernando Santos ao PSG, em jogo a contar para a Taça UEFA, com muita finesse à mistura: o guarda-redes francês, certamente atento às decisões habituais do médio, viu a preparação na zona de tiro e adiantou-se para limitar ângulos. O português reparou, agradeceu e meteu-a por cima, com a classe dos predestinados.
5. 17 golos pelo Benfica – 7 de fora da área (41%)
Tiago Mendes (2001-2004) – Foi uma pedrada no charco quando chegou, parte integral de um pack valioso que o Benfica resgatou em Braga: o médio, Armando Sá e ainda Ricardo Rocha, que chegaria mais tarde.
As qualidades do jovem Tiago, saído das camadas jovens do SC Braga pela mão de Manuel Cajuda, revolucionaram um meio-campo a precisar de qualidade. Um ‘8’ moderno, de fino recorte técnico e com chegada à área – Tiago associava-se eficazmente com os homens da frente, naquele seu jogar de pantufas que depois convenceu Mourinho a levá-lo consigo para Inglaterra.
Se o adversário não permitia as tabelinhas, Tiago tinha no seu repertório a técnica de remate necessária para ser perigoso à distância, como mostram os golos no último derby no velhinho Alvalade ou no 4-3 de Milão, frente ao Inter. Carreira fora, continuaria a mostrar dotes de bombardeiro, tornando-se inesquecíveis alguns golaços, como o que marcou pelo Chelsea FC em pleno Old Trafford."
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