domingo, 1 de novembro de 2020

MORREU O DESPORTO? VIVA O DESPORTO!



 Carl Diem, secretário-geral do Comité Organizador dos Jogos Olímpicos de Berlim (1936) e simultaneamente um intelectual bem provido de ideias que muito ajudaram ao desenvolvimento do desporto alemão e do desporto em geral, sem hesitação afirmava: “o desporto é sempre um jogo e, quando deixa de ser jogo, deixa de ser também desporto”. Ora, o desporto, hoje o mais publicitado e propagandeado, deixou de ser jogo e, se bem pensou o Carl Diem (e se bem penso eu, que o acompanho, neste seu pensar) deixou portanto de ser desporto. Morreu o desporto que eu conheci, pois que nele trabalhei, onde as figuras primeiras eram os jogadores e um ou outro dirigente de relevância social e de bom comportamento moral e onde mais se falava de desporto do que de empresários, euros e SAD’s. Atualmente cabem, no conceito de desporto, uma diversidade de atividades físicas que visam principalmente a saúde e o recreio e a educação, as quais, com a alta competição, formam o “sistema desportivo contemporâneo”. No entanto, na nossa “sociedade da comunicação generalizada” (Vattimo) só o que é espetáculo e altamente competivo se publicita, só o que é mercado “é”. A partir da escola fisiocrata (finais do século XVII e princípios do século XVIII) a economia, ao mesmo tempo que apresenta matriz teórica independente, torna-se verdadeiramente amoral e entroniza na sociedade o “homo oeconomicus” racional, individualista, egoísta. Por outro lado, a censura nunca foi mais impositiva em muita da Comunicação Social: o que não é alta competição não se publica. Por isso, não deverá estranhar-se que continue inalterável a ignorância sobre a contribuição da “motricidade humana”, na formação e desenvolvimento de uma população sadia e socialmente ativa; ou sobre o papel da medicina desportiva, no quadro da medicina preventiva; ou sobre a cultura desportiva, quando se sabe, sem margem para dúvidas, que o desporto é o fenómeno cultural de maior magia no mundo contemporâneo.

O “discurso competente”, neste sistema desportivo, é de alguns dirigentes e de certos jornalistas. Nele, a essência do desporto-mercadoria não se discute. Há mesmo, com uma aura de sageza, uma Internacional Situacionista, corporizada por federações internacionais e nacionais, que institucionaliza este “discurso competente” até à obscenidade, tendo em conta que o obsceno reside, aqui, na publicidade desmesurada da riqueza e do fausto em que certos “agentes do desporto” se pavoneiam, deixando de lado, nas suas crónicas e reportagens, o lado pedagógico e humanizante da prática desportiva. Parece-me importante relembrar que os gregos viam, na ginástica, uma condição “sine qua non” da “paideia”, ou seja, do seu itinerário educativo. Por isso, Platão e Aristóteles dedicaram ao tema páginas imorredouras da sua obra. Devemos, de facto, aos gregos esta atmosfera de aprazimento que rodeia a presença do desporto, no ato educativo. No entender de Habermas, são três os momentos pelos quais importa passar para que se complete o ciclo da evolução humana. Mas, para tanto, há que mudar de paradigma. As sociedades devem estruturar-se, organizar-se, segundo o modelo da comunicação entre sujeitos. Pela comunicação, a relação humana não será a de sujeito-objeto, marginada de suspeitas e desconfianças, mas a de sujeito-sujeito. Mas será tudo isto possível, sem a erradicação do “princípio da performance”, típico do capitalismo? “Mantendo firme a nossa adesão ao otimismo antropológico da tradição iluminista e querendo prosseguir no quadro analítico, proposto por Habermas, diremos então que é preciso desbloquear a racionalização das dimensões até agora sacrificadas às exigências unilaterais da produção económica. E o tempo primordial para efetuar, com indeléveis efeitos, esse desbloqueamento é o tempo escolar. Determinada pelo princípio da sobrevivência, a escola tem sido a fábrica onde industrialmente se transforma o princípio do prazer infantil, no princípio da realidade adulta – e mais precisamente no princípio da performance” (Fernando Cabral Pinto, A Idade da Realização, na História da Vida, na Vida da História, Instituto Piaget, Lisboa, 1993, p. 57).
Porque o tempo do trabalho é, no capitalismo (como nos “capitalismos de estado”, mascarados de socialismo, que se conhecem) o tempo social dominante, o “princípio da performance” inquina a própria prática desportiva – o que significa que o modelo civilizacional, que o espetáculo desportivo assume, integra-se na ordem neoliberal. Do JL (Jornal de Letras, Artes e Ideias), de 21 de Outubro a 3 de Novembro de 2020, de um ensaio de Boaventura de Sousa Santos, recorto o seguinte: “Não admira que os analistas financeiros, ao serviço dos que criaram a ordem neoliberal, prevejam agora que estamos a entrar numa nova era, a era da desordem (…). A pandemia veio agravar a situação e é muito provável que dê azo a muita agitação social (…). A dívida externa de muitos países, em resultado da pandemia, será impagável e insustentável e os mercados financeiros não parecem ter consciência disso. O mesmo sucederá com o endividamento das famílias, sobretudo da classe média, já que foi este o único recurso que tiveram, para manter um certo nível de vida (…). O modelo atual assenta na exploração sem limites da natureza e dos seres humanos, na ideia de crescimento económico infinito, na prioridade do individualismo e da propriedade privada, no secularismo. Este modelo permitiu avanços tecnológicos impressionantes, mas concentrou os benefícios em alguns grupos sociais, ao mesmo tempo que causou e legitimou a exclusão doutros grupos sociais”. Ora, se nada se compreende como individualidade ou singularidade, se não se estabelece como elemento de uma totalidade; se uma visão imediata da realidade nos empurra para uma visão abstrata do mundo e da vida – o desporto pelo desporto significará sempre uma absolutização do parcelar, e portanto uma visão defeituosa, canhestra do “fenómeno desportivo”. Ninguém vale só por si, ou seja, ninguém é indissociável do sistema ecológico e do social e do cultural, em que o seu viver e conviver se determinam.
Portanto, o desporto, porque o individual nunca se encontra isolado, repito-me: “o desporto mais publicitado e propagandeado”, só poderá entender-se como parte de um todo, como elemento de um modelo civilizacional, de uma totalidade, quero eu dizer: a ordem neoliberal. É verdade que qualquer totalidade se apresenta como uma totalidade de contradições, que se movimenta precisamente porque essas contradições se movimentam, se entrechocam. Perdoem-me uma citação mais: “Pensar o real como totalidade corresponde, deste modo, à tomada de uma perspetiva sobre ele, que nos habilita, não só a melhor e mais adequadamente o poder refletir e, por conseguinte, o tornar inteligível, como igualmente a melhor e mais eficazmente poder atuar sobre ele” (José Barata Moura, Totalidade e Contradição, Livros Horizonte, p. 112). Mas pensar o desporto, como totalidade, impele-nos a falar do neoliberalismo mundializado e, porque uma totalidade se desenvolve pela força das contradições que lhe dão vida, outros modos de desporto deverão pensar-se também. Segundo um documento que o Vaticano há pouco publicou, “a pessoa humana, criada à imagem e semelhança de Deus, é mais importante do que o desporto. O ser humano não existe em função do desporto mas, pelo contrário, o desporto deve estar ao serviço da pessoa, tendo em vista o seu desenvolvimento integral” (Dicastério para os Leigos, a Família e a Vida, Dar o Melhor de Si, Paulinas, 2018, p. 62). Que o mesmo é dizer: o desporto que reproduz e multiplica as taras do neoliberalismo dominante deverá sofrer, o mais depressa possível, um corte epistemológico e uma transição paradigmática, começando pela resposta a esta interrogação: como deverá organizar-se o desporto à luz de novos valores? Quais são as condições de possibilidade de conseguir-se um acordo, entre o Ter e o Poder, relativamente à vivência de novos valores, no desporto, quando, como se sabe, os interesses mediáticos, económicos e políticos prevalecem sobre os demais? Afirma o Boaventura de Sousa Santos: “Uma coisa é certa, o tempo das grandes transições inscreveu-se na pele do nosso tempo”. Será que os desportistas ainda o não sentiram? Também no desporto é preciso que nasça um desporto novo!
Manuel Sérgio, In a Bola

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