"São 3 da manhã e não consigo dormir. Dou voltas e mais voltas à cama, penso em mil e uma coisas e o sono não vem. Não é só o Benfica que me tem dado insónias, mas também. Como se explica isto? Como é que o facto de uma bola não ter passado uma linha branca num relvado a 300 kms de distância tem este efeito em mim? Se chegasse um extraterrestre e me perguntasse se sou um ser racional, que coragem teria eu neste momento para lhe dizer "sim, sou". Não sou. É nestas alturas que mais entendo as pessoas religiosas. Causa-me tanto espanto a fé, por definição a crença em algo do qual não existe prova e no entanto não acredito em Deus, mas acredito no Benfica. E amo o Benfica.
Mas vou até mais longe. Tal como Deus, o que é o Benfica? A sério, o que é? É o Presidente? São os jogadores? Mas eu não amo essas pessoas (e nem falo destes, falo dos que houveram e existirão). É o estádio? Mas o estádio não é o Benfica. É o estádio do Benfica. São os adeptos? Não, os adeptos são os adeptos do Benfica. Não são o Benfica. O Benfica é uma entidade abstrata. Então eu amo uma entidade abstrata. De uma forma inexplicável, ao ponto de ocupar uma parte significativa da minha vida. Dizia o Nick Hornby, o escriba da Bíblia de qualquer adepto de futebol (o fantástico Fever Pitch) que muitas vezes quando lhe perguntavam "em que estás a pensar" ele tinha que disfarçar. Que não podia admitir que era no Arsenal pois se respondesse sempre a verdade iriam achar que ele era um maluquinho. Porque ele passava demasiadas horas do dia a pensar no seu clube. Eu também já fui assim...já tive mais vergonha em assumir esta paixão. Ou doença, vá. Em criança não contava que chorava quando o Benfica perdia. Ou seria incapaz até há alguns anos de admitir que provavelmente sei dizer todos os resultados do Benfica nos últimos 30 e tal anos. E no entanto agora admito: se me perguntarem quanto ficou o Farense-Benfica em 86/87 eu sei que ficou 2-0. Ou que em 98/99 perdemos 1-0 com um golo do Hassan no último minuto. Que da última vez que lá tínhamos ido tinhamos ganho 2-0, com golos do Miguel e do Simão (primeiro golo deste ao serviço do Glorioso!). E no entanto se me perguntam o que jantei ontem, tenho imensas dificuldades em responder. Contudo agora já admito. Sou o que sou, gosto do que gosto. E é do Benfica que eu gosto.
Mas então o que se faz quando se tem esta paixão e o seu clube está de rastos? O que tantas vezes é uma benção (e que ninguém tenha dúvidas: amar um clube, amar o futebol é uma experiência incrivelmente gratificante: o Benfica permitiu-me conhecer amigos para a vida, viagens inesquecíveis, sensações maravilhosas. Festejar um golo é uma criancice impagável. Não há dinheiro que compre todas estas vivências que o futebol permite) agora torna-se num martírio. Porque o melhor antídoto seria retirar importância, pensar noutras coisas (aquelas coisas que nos dizem a nós fanáticos e tanto nos irrita: "é só um jogo", "eles é que o ganham", "são 22 homens a correr atrás de uma bola") e eu juro que tento fazer isso. Há família, há amigos, há trabalho, há entretenimentos, há que distrair a cabeça. Enganar o coração. E eu sou especialista nesse engano à alma. Mas mesmo assim custa. E o output desta frustração vem de duas maneiras: tristeza e raiva. A tristeza direcciono à tal entidade abstrata. Que é como se fosse um membro da minha família. E eu vejo esse membro, que está comigo desde criança e que estará comigo até aos finais dos meus dias, deprimido. E isso deixa-me triste e com vontade de o ir reconfortar. Mas depois surge a raiva para o lado não abstrato da entidade. Jogadores. Treinador. Estrutura. Presidente. A esses vem a raiva. Uma raiva que também é algo de abstrata, diga-se. Eu não desejo mal nenhum dessas pessoas, se as visse na rua provavelmente nem as abordaria, muito menos mostraria a minha raiva. Mas é raiva que sinto. Se isto fosse um casamento do qual me pudesse soltar, agora seria a altura de avançar para o divórcio. Mas não posso. Não está do meu lado. Desistir da entidade abstrata não é opção e os não abstratos continuam agarrados ao lugar. São eles que se podem divorciar, eu nada posso fazer. Aliás! O que sou eu para o Benfica? O Benfica nem sabe que eu existo. Era uma pequena cabeça lá em cima no 4º anel a contribuir com 0,0001% do volume decibal que entrava nos ouvidos dos jogadores e que talvez os fizesse correr 0,0001% mais. Sou um número num cartão de sócio, sou uma quota que entra na conta bancária do clube, sou mais um a resmungar nas redes sociais. Pouco há que possa fazer. E isso mais aumenta a frustração. E a tristeza. Com o meu Benfica. Que esteve comigo em criança. Que está comigo em adulto. Que estará comigo na velhice, se Deusébio permitir. Porque lá está, do Benfica não se desiste. Porque ele está dentro de mim.
"E é amar-te, assim, perdidamente
E é seres alma, e sangue, e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda a gente.""
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