segunda-feira, 20 de setembro de 2021

O OUTRO LADO EXISTE

 


"Chamou-se assim um álbum dos Delfins, do tempo em que não eram desdenhados, ano 1988, acho que era o do Nasce Selvagem e da Baía de Cascais que todos sabemos cantarolar até hoje, gosto da expressão, gosto até cada vez mais, neste tempo em que aumentou a dificuldade de lidar com o diferente, com o que não coloca likes nos mesmos posts, sejam entusiasmados ou indignados, com o que sente e pensa coisa diversa, na vida toda como no futebol. E assim, no futebol como na vida toda, apreciar mais uns parece sinónimo imediato de depreciar outros, seja entre Messi e Ronaldo, Guardiola e Klopp, como se houvesse só um lado possível.
O enquadramento vem a propósito da recente jornada europeia e de como foram diferentes os comportamentos das equipas portuguesas, FC Porto e Sporting em particular. Ver as diferenças significa anotar as óbvias mas não se ficar por elas. É óbvio que os portistas têm mais experiência internacional, mais soluções alternativas no plantel, razão para que o leão parecesse enfermo sem Coates e Pote, também que Sérgio está adiante de Rúben na estratégia, mais camaleónico e tarimbado o portista quanto a variar estruturas de jogo e opções pensadas para cada desafio. Rúben Amorim é mais repetitivo no modelo que – valha a verdade, que não é na hora da derrota que tal se deve esquecer - lhe garantiu sucesso rápido e inesperado mas justo.
Também para ser justo, não se regateie o mérito do Porto, dos seus tantos jogadores de qualidade e de uma ideia que foi a certa para confundir aquele adversário a quem a exigência de transpiração tolhe recorrentemente a inspiração. E anote-se desde já igualmente o demérito do Sporting. Mesmo sem algumas unidades nucleares insistiu em ignorar outras, que lhe poderiam dar o que nunca teria com o onze apresentado. Com Matheus Nunes, Nuno Santos e Jovane (a que se juntam Porro e Vinagre), o Sporting começa a viciar-se em vertigem, em que cada posse de bola convida a uma correria, algo que vai funcionando no desequilíbrio da liga portuguesa mas que começa a revelar limitações gritantes assim entra numa escala de exigência crescente, como sucedeu com Famalicão, Porto e, agora, Ajax. Não havendo agora João Mário para dar critério, é fácil perceber que Sarabia depressa se tornará indispensável mas é difícil aceitar que Daniel Bragança, o médio com mais critério entre os leões, seja apenas um recurso por regra e só tenha sido chamado ao minuto 77 de um jogo já muito para lá de perdido.
Dito isto, vale a pena perceber que do outro lado estiveram equipas mesmo muito diferentes. E até podemos começar pelos sempre lembrados orçamentos, embora chegando à conclusão incomum de um rendimento inversamente proporcional ao investimento. O Atlético investe muito mais que o Ajax mas joga muito menos. Nos madrilenos, jogadores fantásticos parecem banais. No Ajax, estrelas nascentes surgem como craques contrastados. Bem lembrava Cruyff que nunca viu um saco de dinheiro ganhar jogos. O Atlético mostra desorientados em campo homens com o talento de Lemar, Félix ou Correa, enquanto o Ajax ergue em dois/três anos uma nova equipa de meninos para brilhar na Europa. Já não há De Ligt, De Jong, De Beek ou Zyech mas reivindicam espaço, impressionantes de talento e personalidade, Timber, Alvarez, Gravenberch e Antony (e preparem-se já para descobrir um destes dias Kenneth Taylor e Naci Unuvar, entre outros). A fábrica não pára e é de talento verdadeiro.
O FC Porto deu um passo muito importante num grupo terrível, tendo ainda suportado a anulação de um golo que deveria envergonhar o futebol (mesmo que tecnicamente correta, a decisão é moralmente um absurdo), mas há que reconhecer que é hoje menos complicado não sofrer golos de um Atlético que de um Ajax. Também foi por saber isso que Conceição surgiu com uma estratégia bem mais ousada que as exibidas na época passada perante Juventus ou Chelsea, por exemplo. O Sporting acreditou no seu modelo único, não identificando devidamente o risco deste rival europeu em concreto. Quis pressionar como sempre uma equipa que não se deixa sequer impressionar e não bloqueou a capacidade que os holandeses têm de explorar sem medo (desde trás e a todo o tempo) os metros disponíveis no corredor central, algo que poucos ousam fazer em Portugal e seguramente nenhum a este nível. De repente, desprotegidos por um trio de avançados em correrias defensivas inúteis, Palhinha surgia banal e Matheus Nunes como um jogador de fogachos. Os leões perceberam com estrondo que nem todos os adversários podem ser condicionados como a maioria dos que defronta na Liga portuguesa e menos ainda surgem a atacar num modesto compasso binário, que varia entre bolas longas facilmente controláveis ou tímidas acelerações de corredor. É, acredito, a grande lição que o Sporting deve retirar da hecatombe que lhe sucedeu no arranque da fase de grupos: que o outro lado existe."

Sem comentários:

Enviar um comentário