sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

BENFICA DE VOLTA AO VIETNAME?

 


"Entre 1994 e 2005 o Benfica esteve onze anos sem ser campeão. E chegou a estar 8 anos sem conquistar qualquer troféu. Foram anos duríssimos em que a própria sobrevivência do clube chegou a estar em causa. Uma crise financeira sem precedentes originou uma crise desportiva gigantesca, que por sua vez resultou numa crise de valores sem paralelo até então na História do clube. Foi uma fase tão ruinosa que entretanto se passou a designar como o "Vietname" do Benfica. Um termo cunhado por Pedro Ribeiro, conhecido radialista e benfiquista aqui há uns anos e que se popularizou até se tornar mainstream. Se a original guerra do Vietname foi para os EUA um conflito desastroso e para os soldados que nela participaram um trauma para a vida, também para o Benfica e os benfiquistas os mesmos adjetivos se coadunam, devidas distâncias de magnitude à parte, claro. Mas metaforicamente o Benfica e os benfiquistas da altura também se viram, de repente, sozinhos numa selva no meio do nada a tentar defender-se de um inimigo furtivo e desconhecido que disparava de todas as direções, sem perceberem muito bem porque estavam ali e porque aquilo tinha acontecido. E quando a guerra acabou, ficaram os estilhaços e os traumas psicológicos para lidar durante muito tempo. Para muitos, sejam soldados americanos ou benfiquistas, pode-se ter saído do Vietname, mas o Vietname não saiu dentro deles.
Entretanto passaram-se vinte anos e tudo isto parecia confinado aos livros de História. Surgiu um estádio novo, um título com Trapattoni, uma recuperação financeira, estabilidade governativa, um rolo compressor, finais europeias, um tetracampeonato e uma liga com 103 golos marcados. Para os mais incautos e distraídos, tudo parecia bem ou quase bem no Reino da Águia e o bicho papão "Vietname" já era quase um mito urbano, apenas uma história de terror que os boomers contavam à noite aos netos Benfiquistas, para que estes comessem a sopa toda. "Olha que se não comeres mais esta colher, o Vietname ainda volta!"
É verdade que, contra uma alegre maioria benfiquista, sempre foi havendo uns velhos do Restelo a gritarem aos quatro ventos que o clube não estava assim tão bem. Que isto ainda não era o verdadeiro Benfica. Que por detrás da luz, havia sombras. Que ao contrário de se reaproximar, o clube até se estava a afastar cada vez mais do seu ideal. Da sua alma. Do seu espírito. Da sua mística. Que avisavam que nos vinte anos pós Vietname vencer 7 Campeonatos e 2 Taças de Portugal não era bom. Não era suficiente. Não era Benfica.
E agora aqui estamos. Janeiro de 2022 e o Benfica avança para o terceiro ano sem troféus. Perdido novamente numa selva, sem ver o fim da mesma à vista. As terríveis recordações estão todas de volta: os mesmos disparos vindos de todo o lado, a mesma sensação de estarmos mal protegidos e de estarmos desconfiados até dos irmãos de armas que temos à nossa volta. Custa muito, mas o trauma voltou, o bicho papão está de volta. Ou assim parece. Será que é? E é o mesmo monstro? É menor? É maior? Ainda ninguém sabe muito bem. Eu diria que é diferente. E se calhar até mais perigoso.
Se o Vietname dos anos 90 teve a seguinte evolução: Crise financeira - crise desportiva - crise de valores; este está a ser de forma inversa: Crise de valores - crise desportiva - e talvez venha aí ainda a crise financeira. Porque ninguém duvide que o Benfica caiu neste buraco devido à falência dos seus valores. O clube do povo, da mística, do Inferno da Luz e do terceiro anel passou a ser o clube do Red Pass, dos descontos na bomba de gasolina, das vendas milionárias e da fábrica do Seixal. As bandeiras com uma história pessoal deram lugar às cartolinas pré-formatadas; a fome de vitórias deu lugar aos recordes nas vendas; os 15 minutos à Benfica deram lugar a sair do estádio mais cedo porque o carro está mal estacionado; a democracia Benfiquista deu lugar ao "apoia garotão, que os outros são todos uns abutres e querem tacho"; o querer fazer a carreira toda no Benfica deu lugar ao "brilho 6 meses e não me cortem as pernas para ir lá para fora"; o Benfiquismo ser um fator óbvio e indispensável para todos que estão lá dentro deu lugar a até o Presidente pode não ser necessariamente benfiquista; o "sirvam o Benfica, não se sirvam dele" deu lugar ao "se calhar até rouba, mas faz", as músicas do Benfica nas colunas de som deram lugar à música techno e reggaeton, a mística deu lugar ao profissionalismo, o foco no desporto e nos títulos deu lugar a obras e projetos.
O Benfica está numa crise desportiva enorme, que vai desde o futebol até às modalidades, e não é necessariamente mudando treinadores e jogadores que se vai resolver isto (embora possivelmente também passe por aí). Também não podemos só dar as mãos e cantar o "Kumbaya". Há toda uma introspecção que dirigentes, atletas e adeptos precisamos de fazer. Refletir como chegamos a este ponto e o que vamos fazer para mudar isto. Estamos na maior crise de identidade da nossa História e isto só vai mudar verdadeiramente quando voltarmos à nossa génese, ao que sempre nos distinguiu dos outros e considerarmos inegociáveis os valores fundamentais do clube e exigirmos que o foco nos interesses desportivos seja a prioridade total. Vamos abraçar quem serve o Benfica e expulsar quem se serve do Glorioso. Defender quem defende o Benfica e atacar quem ataca o Benfica. Esteja lá dentro ou cá fora.
Por mais que nos custe, é altura de arregaçar mangas e ir novamente à luta no meio da selva. Porque desistir não é opção. E se já passamos por um Vietname, também passamos por um Afeganistão.
"Chove? Está frio? Faz calor? O que importa? Nem que o jogo seja no fim do mundo, entre as neves da serra ou no meio das chamas do inferno...pela terra, pelo mar ou pelo ar...eles aí vão, os adeptos do Benfica, atrás da sua equipa. Grande, incomparável, extraordinária massa associativa." - Bèla Guttmann"

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