sexta-feira, 14 de março de 2025

O HOMEM QUE NÃO FOI E UMA FLOR NO TRASEIRO



 "Todos os jogadores do Real Madrid foram mostrar a Taça dos Campeões a Franco. Menos Antonio Calpe


Ié-ié. Tradução portuguesa meio em calão de yeah-yeah.
«She loves you, yeah, yeah, yeah
She loves you, yeah, yeah, yeah
With a love like that
You know you should be glad», cantavam os Beatles. Depois, por cá, já havia Os Babies, de José Cid, e depois Os Conchas e Daniel Bacelar, e Os Ekos, e o Conjunto Académico João Paulo, da Madeira, Os Celtas, Os Demónios Negros e Os Sheiks que começaram por ser Windsors e Black Rider, com o meu mano Carlos Mendes, o Fernando Chaby, o Jorge Barreto e o Paulo de Carvalho, mais tarde com outro dos meus amigos queridos, Fernando Tordo. Até existiu mesmo um Concurso Ié-Ié, no Teatro Monumental de Lisboa, e apareceram ainda Os Tubarões, de Viseu, Os Galãs, do Porto, Os Czares, de Aveiro, Os Jovens do Ritmo, do Seixal, Os Chinchilas, de Carcavelos, Os Demónios Negros, do Funchal, Os Diamantes Negros, de Sintra, Os Tártaros, do Porto, Os Bárbaros, de Arcos de Valdevez, e Os Sombras da Parede, inevitavelmente de Parede. Toda uma história!
Em Espanha o fenómeno cresceu em 1963. No feminino, principalmente: Pilar García de la Mata y Caballero de Rodas, Conchita Velasco, Marisol, Rosalía, Lita Torelló, Salomé, Lorella, Ana Belén, Karina, Gelu o Rocío Dúrcal. Em Madrid, por seu lado, o Real abandonava a velhice de Puskás e de Di Stéfano e construía uma equipa de jovens em redor de Paco Gento: José Araquistáin, Pachín, Pedro de Felipe, Manuel Sanchís, Pirri, Zoco, Fernando Serena, Amancio Amaro, Ramón Grosso, Manuel Velázquez e Antonio Calde. El Equipo Yé-Yé. A Marca fez uma primeira página impagável: um grupo de jogadores com cabeleiras à Beatle. Cada nome uma história. Mas é de Antonio Calpe Hernández que eu queria falar. E vou falar.
Talento, classe, caráter e compromisso, diziam dele. Nasceu em Valência, no dia 4 de fevereiro de 1940. Começou no Club Deportivo Alcoyano, que exibe o orgulhoso morcego da região valenciana. A seguir outro morcego: o do Levante Unión Deportiva. Em 1965 o clube passava por uma grave crise económica e precisava de vender. Antonio vai para o Real Madrid. No ano seguinte ganha a Taça dos Campeões. Outras palavras se destacaram no seu horizonte: paternalismo, uniformidade nacional, hierarquização. Os motos de Francisco Franco Bahamonde, o pulha de El Ferrol.
Para o Caudilho (que era viciado na Quiniela, o Totobola dos nossos vizinhos), o futebol foi apenas um instrumento para se declarar vitorioso noutra vertente da sua reles existência, para surgir impante nas fotografias com sua figura de pequeno rinoceronte agachado, para propagar a bondade da sua mensagem torpe. O Real Madrid dava-lhe jeito; o Real Madrid punha-se a jeito.
Heysel Park, Bruxelas, 11 de maio de 1966. O Real ganhou ao Partizan de Belgrado (2-1) e juntou outra Taça dos Campeões às cinco que já tinha. A defesa madrilena jogou com Manuel Sanchís, Ignacio Zoco, Pedro de Felipe ePachín. Calpe, lateral esquerdo, ficou no banco. Teria tempo de assumir o protagonismo.
O protocolo mandava que todos fossem mostrar o troféu a Franco, no Palácio de El Prado. E Zoco, o capitão, juntou os colegas no balneário para os avisar que seria a primeira coisa que fariam no regresso a Madrid. De um canto soltou-se uma voz firme: «YONOVOY!».
Filho da Guerra Civil, Antonio viveu a infância nas ruas de uma Valência destruída, ruas abertas como feridas, destroços de casas, mágoa eterna pelos mortos. A sua memória não admitia ceder perante um tirano calhorda. Não jogava apenas pelo lado esquerdo do campo, caminhava pelo lado esquerdo da vida. Não foi. De apelido era Calpe. Antonio foi-lhe dado em batismo por conta de um tio fuzilado pelos falangistas. Limitou-se a justificar: «No le podía dar ese disgusto a la familia». Viveu mais 55 anos, mesmo que muitos deles destruídos por uma doença sem escrúpulos. Miguel Muñoz, o treinador do Real, dizia dessa sua equipa: «Tengo una gran flor en el trasero…»."

Afonso de Melo, in Sol

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