"Vieira funciona como segunda linha de betão, difícil de transpor. Parece ausente ou distraído, mas quase nada lhe escapa.
Como a memória é curta, e no futebol ainda mais, quando dá jeito, manda a verdade recordar que há um ano, igualmente com onze jornadas disputadas na Liga, o cenário era bem diferente daquele que hoje se regista. O Sporting, inebriado pelo efeito Jesus, que se julgava ser prenúncio de conquistas a perder de vista, liderava com mais dois pontos que o FC Porto. Em patamar abaixo, consideravelmente abaixo, a sete pontos do leão, surgia o Benfica, desconsiderado e a enfrentar ventos e marés no combate a vaga de ataques sem rosto.
De fora e de dentro do clube, o cerco crítico assumiu proporções gigantescas. Adivinharam-se terríveis prejuízos. Conjecturaram-se colapsos traumatizantes no projecto de Vieira. Deu-se como garantido o despedimento do treinador. Sentenciou-se o fim do consulado do presidente.
Enfim, gerou-se uma barulheira sem ponta de credibilidade e de uma excentricidade opinativa mal sustentada, como se alguma vez a sobrevivência de um clube com a dimensão e a história do Benfica pudesse ficar dependente dos caprichos de um treinador, por mais rico que fosse o seu currículo internacional, o que nem sequer era o caso, como é público.
Um ano depois, já sem poeira no ar, verifica-se que o Estádio da Luz continua de pé e mais concorrido do que nunca, sendo na actualidade, como li em A Bola, o oitavo da Europa com mais assistências, apenas superado, convém sublinhar, por Borussia de Dortmund, Barcelona, Manchester United, Bayern, Real Madrid, Schalke e Arsenal, não constando na lista mais algum clube português entre os 20 primeiros deste ranking. Além de, em comparação com a mesma jornada da última época (11.ª), quem lidera agora é o Benfica, cinco pontos à frente do Sporting e sete do FC Porto. As voltas que muitos juravam que isto ia dar e... não deu. Melhor, deu, embora em sentido contrário: Jesus não funcionou como se pretendia em Alvalade, Lopetegui/Peseiro marcaram passo no Dragão e Vitória teve de fazer o favor de ser campeão, permita-se-me a ironia.
As forças demoníacas erraram. Nada do que previram aconteceu. Os factos falam por si e demonstram que tudo se resumiu a uma manobra desestabilizadora de grandes proporções que Luís Filipe Vieira - entretanto reeleito com 90 e tal por cento de votos e ainda assim houve quem tivesse visto nesse resultado sinal de distanciação por parte da família encarnada - destruiu pela discrição, pela firmeza das suas convicções e, principalmente, pela mais poderosa arma que utiliza quando quer proteger de intromissões alheias a instituição a que preside: apelo à união da família benfiquista para um Benfica maior e mais forte, inovador e preparado para vencer os desafios do futuro.
Vieira pode parecer um romântico ao adoptar um estilo de presidência cordato e dialogante, em choque com a truculência partilhada pela maioria. Nem sempre procedeu com o tempero conveniente, sem dúvida, mas teve a virtude de aprender depressa e, mais significativo, de saber estar à altura da grandeza do emblema da águia.
Cedo compreendeu que ser presidente do Benfica o devia inibir de alinhar em algazarras de bairro disfarçadas de rivalidades ou dar troco a reptos futeis de quem, provavelmente, gostaria de ser como ele mas não sabe como.
Proclamou o objectivo do tri quando muito boa gente chorava baba e ranho por causa da saída de Jesus. Reflexo de bem urdida operação de maledicência que gerou embaraços na organização encarnada e interferiu no trabalho de Vitória. Sem dramas, porém. Para quem o conhece minimamente já deve ter verificado que Vieira funciona como segunda linha de betão, difícil de transpor. Parece ausente ou distraído, mas quase nada lhe escapa.
É um vigilante atento, daqueles que se for preciso não dormem. Revela especial intuição para prever as coisas a preparar soluções. De aí que decorriam ainda os festejos do campeonato que Jesus prometeu e Vitória venceu e já Vieira apontava a meta do tetra, indiferente aos outros.
Esse é, aliás, um dos seus trunfos mais valiosos, acreditar na organização que criou, saber com o que conta em termos de disponibilidade/qualidade dos praticantes e ver no seu treinador, além de elevada competência, firmes traços de seriedade e lealdade.
Por outro lado, a boa saúde da águia na fase pós-Jesus permite acreditar que o V de Vieira associado ao V de Vitória traduz uma relação destinada a ser feliz."
Fernando Guerra, in A Bola
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