terça-feira, 11 de junho de 2019

A DORMIR NO CARRO...


"Antes de chegar ao Benfica, a ameaça de que passaria a jogar em «cadeira de rodas»; Da cidade-mártir à noite má

1. Foi em Bijeljina que a Guerra da Bósnia estoirou - quando Arkan Raznatovic (que fora chefe de claque no Estrela Vermelha) se lançou a «limpeza étnica» (que ele considerava «defesa dos sérvios bósnios»). As suas milícias fuzilaram os bósnios que não fossem sérvios queimaram-lhes casas e propriedades, confiscaram-lhes dinheiros e bens, destruíam monumentos e mesquitas. Mortos foram mais de 1000, muitos dos que escaparam à chacina, a ela escaparam por aceitarem ser deportados ou fugirem. (E só a partir de 2012 5000 desses bósnios não sérvios puderam, enfim, regressar a Bijeljina, que era já o que é: Bósnio e Herzegovina).

2. Quando ele, o Luka, nasceu em Bijeljina (por finais de 1997), Milan, o pai, acabara de chegar ao Sartid Smederevo (fora para lá do Partizan). Do Sartid saltou, depois para o Vojvodina - e, aventurou-se à Rússia, Chernomerets, Rostov e Saturn Ramenskoye. Era defesa, o seu adeus ao jogo deu-se em meados de 2004 no Saturn - e já tinha percebido, então, o dom que Luka tinha nos pés.

3. Ao Milan, o futebol não lhe dera riqueza. Por isso, a família vivia, modesta nas suas posses, por Batar, a 14 quilómetros de Bijeljina - quando Tomislav Milicevic, olheiro do Estrela Vermelha, se encantou com Luka e logo pediu ao pai que o deixasse ir para lá jogar (oito anos não tinha ainda...)

4. O primeiro ordenado de Luka foi de 50 euros - e mais 17 por viagem para treino ou jogo. Belgrado ficava a mais de 100 quilómetros de Batar - e Milan contou-o: «Vários vezes deixei de fazer viagem para não gastar o dinheiro que me davam para a gasolina. Ficávamos no carro, à espera do treino seguinte, do jogo. Estacionava à porta do estádio, Luka deitava-se no banco de trás para dormir, tapava-o com mantas e eu punha-me a fumar para que ele não tivesse mais frio...»

5. A cada ano que passava, maior era o seu fulgor. Para evitar salto para o Partizan, o Estrela Vermelha prometeu mais um bónus a Milan: 50 euros por cada golo que Luka marcasse - e ele continuou a marcá-los a fio. «Todos já olhavam para o Messi e o Ronaldo, eu gostava do Ibrahimovic, mas o meu ídolo já era Falcao». (E sim, o fascínio viera-lhe do que vira Falcao fazer no FC Porto - e não muito depois já lhe chamavam Falcao da Sérvia).

6. Com 16 anos, 5 meses e 5 dias, abriu-se-lhe a primeira equipa do Estrela Vermelha. Dois minutos após pisar o relvado, cumpriu, de fogacho, a sua sina: fez golo ao Vojvodina. Meses depois, Milan recebeu carta que dizia: «Se não nos deres o dinheiro que queremos, partimos as pernas ao teu filho, vai ter de jogar numa cadeira de rodas». Não, não lhes deu o dinheiro - investigação policial descobriu, num abrir e fechar de olhos, os dois chantagistas e atirou-os para a prisão.

7. Esfanicado em crise financeira, o Estrela Vermelha vendeu-o ao Benfica por 600 mil euros - e pouco jogou: «Não estava nos meus planos deixar Belgrado tão cedo. Nem sequer queria sair, saí obrigado. Não foi fácil, não estava mentalmente preparado...»

8. Com o destino a tocar-lhe a ponta dos dedos, Luka deixou-o fugir numa noite má: «Mitroglou marcava em praticamente todos os jogos, quando não marcava, ainda havia o Jiménez. A certa altura, estava o Mitroglou em má forma e o Jiménez lesionado - e eu fiz a melhor semana de treinos na equipa principal. Marcava à esquerda, à direita, tudo o que tentava, marcava. Colocava a bola entre as pernas de todos. A dois dias do jogo, o treinador colocou-me a treinar entre os titulares. No final do treino, o Rui Costa disse que aquele sim era eu, só tinha de manter o nível. Decidi ir à Baixa, só vim embora depois da meia-noite, responsáveis do Benfica viram-me e já não fui convocado...»

9. Vivia a angústia da «oportunidade perdida» na Luz quando Fredi Bobic, o director desportivo do Eintracht Frankfurt propôs, sagaz, envolvê-lo no negócio da transferência de Seferovic para o Benfica. Foi de Luka o golo (de calcanhar) que pôs o Eintracht na final da Taça (ganha ao Bayern) - e de Korbel ouviu-se: «Nunca vi jogador de 20 anos com a sua qualidade. Lembra Yebosh e Cha Bum-kum com o físico do Gerd Muller». A eliminação do Benfica passou por ele a depois de marcar a Bundesliga com 5 golos nos 7-1 ao Dusseldorf - o Real contratou-o por 60 milhões de euros (deles cabendo 168 milhões ao Benfica)."

António Simões, in A Bola

Sem comentários:

Enviar um comentário