segunda-feira, 30 de março de 2020

PERGUNTEM AOS PÁSSAROS


"Já vi este filme. As imagens repetem-se: não passa ninguém nas ruas, a cidade ficou deserta, e os pássaros tomaram o seu lugar nas bordas dos telhados, nos parapeitos das janelas, nos fios de electricidade. Pássaros e pássaros e pássaros. De todas as espécies. Na minha varanda, três gaivotas observam o correr do rio numa ansiedade de peixes. Há um silêncio tão profundo que pode ser que o mundo tenha acabado sem a gente dar por ela, fechados na prisão mais larga de todas as prisões, esta prisão que, de repente, passou a ser a Terra inteira, sem uma esquina onde possamos esconder-nos. 
No filme que vi, tantas vezes aliás, nunca percebi se o mal estava nos pássaros ou em nós. Ou se era um mal absorvido pela própria inconsciência de que ele existe em qualquer lugar onde haja homens e pássaros. Da minha varanda não consigo ver esse mal invisível, inimigo insidioso, mas vejo os pássaros que fixam o Sado em silêncio. Estou cá no alto da torre da resistência, no meu posto, procurando os anjos tortos, esses que vivem na sombra e, como dizia Drummond de Andrade, não tenho teogonia, não tenho parede nua onde me encostar, nem cavalo preto para fugir a galope. Recordo-me das aulas de Física: “Um lugar tão infinitamente compacto que fica sem dimensão chama-se singularidade”.
A singularidade dos pássaros. Sacodem as penas e olham-me como se a culpa fosse minha. Talvez, como no filme, consiga sair de casa num mutismo completo, meter-me no carro e partir para longe. Só que, desta vez, o mal que nos assoberba não tem longe nem distância: está em todos os espaços de todos os espaços, principalmente inserido nas feridas da nossa solidão, que é a de não nos permitirem acarinhar os que vivem no movimento de rotação do nosso amor irrevogável. Drummond outra vez: 
“Que pode uma criatura senão
entre criaturas, amar?
amar e esquecer, amar e malamar
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?”
Não sei responder. Perguntem aos pássaros..."

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