"Nas motos não há retrovisores, os espelhos são os instintos e o que está decalcado nas entranhas de cada piloto, escrevo eu, que nunca sentei o traseiro sobre duas rodas capazes de acelerar até aos 300 km/h e jamais sentarei. Essas tripas de inconsciência perante a velocidade terão talvez feito Jack Miller pensar que, bloqueando a ultrapassagem de Pol Espargaró por fora, travando também tarde para o empurrar além pista, estaria a defender-se com mestria do derradeiro ataque, dali faltando apenas um endireitar da moto e uma última contorção de pulso para garantir o primeiro lugar no Grande Prémio da Estíria, numa lógica tão lisa como o são os pneus e a pista que confluem no MotoGP.
Mas, como tantos maravilhosos 'mas' no desporto que nos fazem maravilhar e nos agarram, atrás vinha o português, esperto enquanto se aproximava da picardia que o precedia, paciente quando manteve a trajectória e glorioso ao acelerar assim que as consequências da luta alheia lhe abriram o caminho para, voltando a pegar na minha ignorância, poder desenfrear os gestos que todo o piloto dedicado a esta categoria de motociclismo deve sonhar: abanar o corpo agarrado ao guiador, soltar um braço em gancho, contorcido pela força da alegria, socando o ar e presumivelmente enchendo o capacete de berraria festiva.
Miguel Oliveira ganhou uma corrida de MotoGP, um português logrou o que nunca um português conseguira.
Ele nasceu num país pequeno em território, em número de gente e em dinheiros para apoiar outras modalidades que não o futebol todo-conquistador de afectos, como o é na maioria dos países no planeta redondo que se arredondou neste gosto, que afunila a atenção mediática, uma e outra vez, para a mais circular das bolas, mundialmente gerida pela FIFA, organização em que há mais membros (211) do que países reconhecidos pelas Nações Unidas (195). É um círculo vicioso ao qual, esta segunda-feira, os três jornais desportivos portugueses escaparam, engrandecendo nas primeiras páginas quem escapou, ainda imberbe, ao que teria sido um gosto natural por futebol.
Miguel Oliveira ganhou na última curva do Red Bull Ring, na Áustria, no circuito da marca que patrocina o português e a Tech3, equipa de segunda da KTM, ultrapassando o piloto sentado na moto da equipa principal da construtora - Espargaró, que substituirá na próxima época - porque, obviamente, é um grande piloto, foi o maior deles todos no domingo, mas, eis o 'mas', sobretudo porque era ele ainda canalha, como se diz na terra de onde vem a Lídia Paralta Gomes, que segue e percebe de motociclismo bem mais do que eu, e o pai deu-lhe um exemplar de corrida de duas rodas que o agarrou à paixão do progenitor, já ele um divergente no gosto desportivo generalizado de um país, que ensinou e deu condições ao filho para também ele apanhar o gosto e tornar-se no melhor português de sempre a aparecer no motociclismo.
E Miguel começou por ser o mais lento em todas as corridas nas quais participou, na primeira vez em que correu o circuito nacional de velocidade. Já se espetou várias vezes e cicatrizes tem que o provem. Diz que não tem medo da quase inevitabilidade de cair em pista, da única vez que com ele falei até tentou explicar que é quase como desligar um botão mental do medo e acelerar por aí fora, esquivando-se de outros motos e tentando ultrapassar um contexto que sempre estaria contra ele, por se ter dedicado, como o pai, a uma modalidade sem tradição na cultura desportiva portuguesa. "Se tivesse sido pescador, hoje estaria a pescar", confessou o piloto, num perfil que lhe filmaram há tempos, remetendo, sim, para o que é bem mais português do que andar montado em cima de uma moto a desafiar a sorte com velocidade.
Bem português, claro, é o futebol, e honra teve Portugal e Lisboa em acolherem a fase final improvisada da Liga dos Campeões. A final jogou-se no mesmo dia de Miguel Oliveira e o PSG inflacionado pelos milhões de injeção qatari perdeu com o Bayern de Munique milionária por tradição. E Neymar, o mais caro dos futebolistas por quem uma fortuna foi paga para inspirar o clube até a vitória que nunca estivera tão perto, chorou copiosamente, talvez porque o brasileiro é cobrado e escrutinado como ninguém e ele exigem costas larguíssimas para lhe caberem nas cavalitas todo um desejo que continua a canalizar investimento para Paris.
Não é uma nota de rodapé, nem poderia ser, mas, puxando dos 'mas', a Champions não teve um clube ou jogador português presente em estádios sem gente para os ver, apesar da pomposa magnitude com que a competição foi apresentada, a meio de junho, com Marcelo Rebelo de Sousa, António Costa, Fernando Medina, Eduardo Ferro Rodrigues e Fernando Gomes a discursarem na cerimónia. A prova, vendida pelo primeiro-ministro como "uma vitória antecipada para todos os portugueses", um prémio inexistente que premeia ninguém, já foi jogada, e nenhuma das figuras então presentes veio, nos dois meses já passados, dizer, por exemplo, se haverá, ou não, futebol de formação na próxima época.
Qualquer miúdo ou miúda que jogue futebol em qualquer clube prefirirá jogar futebol do que apenas vê-lo, ainda por cima só pela televisão. Mas o futebol de formação não é a Liga dos Campeões."
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