terça-feira, 3 de setembro de 2024

AGORA QUE ROGER SCHMIDT JÁ É PASSADO, A QUESTÃO DE TER RAZÃO NO TEMPO CERTO

 


Rui Costa não quis ver o que estava à frente dos olhos e perdeu meses preciosos. Agora, para recuperar o tempo perdido, precisa de um milagre semelhante ao que Bruno Lage operou em 2018/19, sendo que é raro os raios caírem duas vezes no mesmo sítio…

Há quase quatro meses publiquei, em A BOLA e em ABOLA.PT, a análise que à frente passo a transcrever, pela óbvia atualidade de que se reveste. É claro que não tenho poderes que me permitem ler o futuro, e quando faço algum tipo de previsão limito-me a interpretar os sinais, conhecer o meio envolvente, e nunca desprezar a história. O Benfica, no caso de Roger Schmidt, brincou com o fogo e queimou-se, apostou na lotaria e o bilhete não saiu premiado, sucedendo a Rui Costa o mesmo que já tinha acontecido a vários dos seus antecessores.
118 DIAS ATRÁS…
Mas recuemos ao princípio de maio de 2024 e recuperemos o que então escrevi, com o título «Nem a história nem o bom senso aconselham a manter Roger Schmidt à frente do Benfica», a que se seguia um pós-título que enfatizava o dilema que se colocava ao presidente do Benfica - «Rui Costa tem de decidir se despedir o treinador é uma despesa ou um investimento; poucas pessoas conhecem o Benfica e os seus adeptos como o presidente, que tem que tomar uma decisão que irá definir a sua liderança…»
A análise que se seguia, apoiada em factos, com datas e nomes, rezava assim:
«O que está a acontecer com Roger Schmidt no Benfica não é novo nem no futebol, nem sequer no clube da Luz. O problema principal reside no divórcio litigioso entre sócios e adeptos dos encarnados e o treinador alemão, público, notório, e parece-me que irreversível, que limita drasticamente a margem de manobra face a um eventual insucesso pontual do técnico germânico na próxima temporada, assim continue ao serviço do Benfica.
Valerá a pena lembrar que Roger Schmidt — sem que se lhe questione o profissionalismo — nunca lidou bem com a crítica, achou-se acima do estado de alma dos únicos donos do clube, e teve sempre da realidade uma visão virtual, que ficou patente nas declarações surreais que proferiu após a derrota com o Famalicão, onde considerou a época positiva, com muitas coisas boas, ao mesmo tempo que Nicolás Otamendi, capitão de equipa, pedia desculpa aos benfiquistas por uma temporada medíocre, muitos furos abaixo dos padrões exigíveis ao clube da Luz.
Com contrato até 2026 (e há que dizer que quando Rui Costa decidiu prolongar o vínculo com o treinador alemão ouviu aplausos de todos os quadrantes, mesmo daqueles que agora, com memória curta, questionam esse ato de gestão), Roger Schmidt tem, ou não, condições para levar a nau benfiquista a bom porto em 2024/2025?
O que deve fazer Rui Costa, manter o técnico contra a vontade dos adeptos, ou dar por fim o consulado de Schmidt, arcando com as despesas inerentes? A história diz-nos, reportando-nos ao Benfica, que correu sempre mal manter um treinador que tenha acabado a época fragilizado. Talvez a situação mais parecida com uma exceção a esta regra tenha ocorrido com Jorge Jesus, que em Maio de 2013 perdeu o campeonato, com o golo de Kelvin, a final da Liga Europa, para o Chelsea, no último minuto, e a final da Taça de Portugal para o V. Guimarães de Rui Vitória. Mesmo assim, porque tinha sido campeão em 2009/2010 e chegado a uma final europeia, Luís Filipe Vieira decidiu mantê-lo e JJ foi campeão em 2013/14 e 2014/15.
Porém, será pertinente lembrar que Jesus só não foi despedido à segunda jornada da época de 2013/2014, porque, quando perdia em casa com o Gil Vicente por 1-0, Markovic (90+1) e Lima (90+2) deram a volta ao resultado e evitaram a chicotada que parecia inevitável.
Em todos os outros casos, no últimos 30 anos, sempre que Manuel Damásio, Vale e Azevedo, Manuel Vilarinho ou Luís Filipe Vieira decidiram começar a época com treinadores já fragilizados, tal como sucede agora com Roger Schmidt, a vida não lhes correu bem.
Vamos então a factos:
Artur Jorge, que chegou à Luz com inúmeros anticorpos trazidos das Antas, depois de uma atribulada época de 1994/1995 (em que foi submetido a uma cirurgia delicada), foi alvo de grande contestação, mesmo assim começou a temporada de 1995/1996, e acabou despedido a 9 de setembro.
Paulo Autuori, que teve um alargadíssimo período de adaptação ao Benfica, sendo responsável pela estruturação do plantel, o que lhe gerou alguma impopularidade, durou apenas seis meses.
Manuel José, que aterrou na Luz em janeiro de 1997, chegou contestado a 1997/1998, e viu o contrato rescindido a 20 de setembro de 1997.
Jupp Heynckes, depois de uma época cheia de turbulência, essencialmente por culpa de Vale e Azevedo, não sobreviveu à derrota em Vigo, que provocou um rombo nas relações com os adeptos e lhe acabou com o estado de graça. Mesmo assim começou a época seguinte, 2000/2001, e acabou despedido a 18 de setembro de 2000.
Toni, que tendo antes sido bicampeão como treinador, aceitou ser bombeiro para o fogo que lavrava na Luz em 2000/2001, acabou essa época penosa para o Benfica (6.º lugar), e na temporada seguinte não chegou ao Natal.
Jesualdo Ferreira sucedeu a Toni, terminou essa época de 2001/2002 sem grande brilho, e na temporada seguinte foi despedido a 24 de novembro, depois de ter sido eliminado da Taça, em casa, pelo Gondomar.
Fernando Santos, que fez uma época razoável em 2006/2007, mas nunca caiu nas boas braças do
Terceiro Anel, foi mantido no cargo em 2007/2008, e despedido após a primeira jornada!
Rui Vitória, que venceu os dois últimos campeonatos do tetra, teve uma terceira época sofrível, recebeu contestação, e depois de ser deixado pela Direção do Benfica em banho-maria tempo demais, acabou por rescindir o contrato a 3 de janeiro de 2019.
Finalmente, Jorge Jesus, que regressou à Luz contra a vontade da esmagadora maioria dos sócios e adeptos do Benfica, acabou despedido na segunda temporada, a 28 de dezembro, e só não o foi antes porque a pandemia colocou o futebol à porta fechada, e a contestação ao atual treinador do Al Hilal só se fez sentir com intensidade quando as bancadas voltaram a estar preenchidas.
Ninguém terá dúvidas de que Roger Schmidt não goza das boas graças do Terceiro Anel e que, inclusivamente, será, de todos os nomes que acima foram invocados, aquele que patina em gelo mais fino. E nem valerá a pena perder tempo a avaliar de quem foram as culpas da situação a que a relação do treinador com sócios e adeptos chegou.
Aliás, seria bem interessante que fosse clarificada a responsabilidade na feitura do plantel, que jogadores foram desejados por Schmidt e quais aqueles que lhe foram impostos, para se perceber como foi possível, num ano apenas, desequilibrar um plantel que primava pela homogeneidade e hipotecar um modelo de jogo que teve sucesso enquanto foi baseado na pressão alta, o que obrigava a que todos se emprenhassem a fundo no processo de recuperação da bola. Mas deixemos o detalhe dessa análise para outra ocasião. Para já, é por demais evidente que Rui Costa tem em mãos um problema delicado, de cuja resolução poderá depender em grande medida o sucesso do Benfica em 2024/2025.
O bom-senso aponta para que, perante a degradação da posição de Roger Schmidt, o Benfica dê por terminada a relação com o treinador alemão e vá em busca de uma solução inclusiva, empática e ao mesmo tempo ambiciosa e competente. A história, como se viu, vai exatamente no mesmo sentido. Tem a palavra Rui Costa…»
A CRIANÇA NOS BRAÇOS
Pois é, precisamente 118 dias depois da publicação desta análise, é Rui Costa que tem a criança nos braços, tarde e a más horas, já sem tempo para formatar o plantel à medida do modelo de jogo do novo treinador, a quem entregará um grupo de jogadores heterogéneo, com demasiados cromos repetidos, e algumas lacunas importantes que só poderão ser corrigidas em janeiro.
Contas feitas, Roger Schmidt durou mais três jornadas que Fernando Santos (recordista absoluto, despedido à primeira jornada), mais uma que Artur Jorge, as mesmas que Manuel José e menos uma que Jupp Heynckes. Nada de novo, pois, em casos de divórcio com o Terceiro Anel…
Neste contexto, não é preciso ter doutoramento em futebol para saber que, tirado da equação o principal alvo do descontentamento dos benfiquistas, a mira passou a estar apontada a Rui Costa, que deverá ter consciência de como é fino o gelo em que a partir de agora passa a patinar. O presidente do Benfica, mesmo assim, tem um trunfo que continua a poder jogar, desde que consiga inverter, acertando na escolha do novo treinador, o plano inclinado em que caiu a sua popularidade junto dos adeptos: Rui Costa é um ídolo do clube, ninguém lhe dá lições de benfiquismo, e a qualquer momento, porque nunca foi um presidente como os outros, poderá recuperar o que a teimosia por Schmidt lhe fez perder.
O FENÓMENO BRUNO LAGE
É certo que encontrar um fenómeno como o de Bruno Lage, que pegou numa época perdida (18/19) e acabou a festejar no Marquês, é altamente improvável (mesno para Lage). Mas em relação a Bruno Lage há que dizer mais, já que é apontado como uma das soluções mais consistentes para render Schmidt. O que ele fez nos primeiros 38 jogos de Liga em que esteve à frente do Benfica é absolutamente inaudito, já que nessas partidas, 19 de 2018/19 e 19 de 2019/20, venceu 36, empatou um e perdeu o outro. É certo que dificilmente um raio cai dua vezes no mesmo sítio e este é um momento da época de particular escassez de soluções quanto a treinador, porque, convenhamos, para o nível de exigência do Benfica, os nomes ‘à prova de bala’ não abundam, antes pelo contrário, a Champions está à porta e as ambições na Liga já passam por recuperar os cinco pontos deixados no Minho. É verdade, quando se fala em Lage, que o Benfica teve regressos de sucesso ao banco de responsáveis – por exemplo, Otto , Toni, Eriksson e Mortimore foram campeões na segunda passagem, depois de o terem sido na primeira – e casos em que isso não sucedeu, como Bèlla Guttmann e Jorge Jesus.
Mas dificilmente o sucessor do técnico alemão não virá alertado para as insuficiência demonstradas pelo Benfica, nomeadamente a previsibilidade do duplo pivot, a ausência de jogo exterior e a ’overdose’ de jogo interior, e a escassez de presença na área contrária. Se a tudo isto se associar uma gritante incapacidade de ser agressivo no momento de recuperar a bola, o retrato traçado não fica bonito, mas ficará, pelo menos, fidedigno.
A QUESTÃO POLÍTICA
Haverá, também, neste puzzle encarnado, que encarar a questão política, que já esteve presente de forma veemente nas últimas AG’s, e que perante este ‘restart’ há muito exigido por sócios e adeptos e agora decidido por Rui Costa, não deixará de tender a avolumar-se, especialmente se, no imediato, não houver uma inversão, quer dos resultados, quer da qualidade do futebol. Há, no Benfica, duas tendências opositoras organizadas, que estão permanentemente atentas aos desenvolvimentos na vida do clube, e perfilam-se como alternativas, em futuras eleições. E, como já o disse e escrevi inúmeras vezes, por melhor que seja a gestão de um clube, por mais equilibradas que estejam as contas, por mais sucesso que se obtenha nas modalidades ditas amadoras, o que faz e derruba presidentes são, em primeiro lugar, os resultados do futebol, e logo a seguir a perceção que haja relativamente ao rumo que a liderança está a dar à política desportiva do clube. E, neste particular, se a saída de Enzo Fernández foi vista pelo universo encarnado como inevitável, e ficou muito nítida a imagem de um presidente que fez tudo para manter o argentino na Luz pelo menos até ao fim da época, o mesmo não pode ser dito da transferência de João Neves para Paris, por valores que, embora altos, ficaram longe do potencial do jogador, para lá do rombo desportivo, ou da partida de David Neres e a ver vamos de quem mais.
Vêm aí os jogos da Seleção Nacional, e durante duas semanas o Benfica, leia-se Rui Costa, vai ter espaço e tempo para apresentar soluções. Depois, quando o Santa Clara visitar a Luz a meio de setembro, e logo a seguir se iniciar a nova Liga dos Campeões, será novamente a ditadura dos resultados, para o bem ou para o mal, a ditar leis…
PS – Depois de uma década de estabilidade relativamente a treinadores, dividida entre Jorge Jesus e Rui Vitória, que rendeu seis títulos nacionais, o Benfica tem sido pouco assertivo nas escolhas – Jorge Jesus, um excelente treinador, não tinha condições para regressar à Luz, e só não saiu mais cedo porque se cruzou com os jogos à porta fechada por causa da pandemia, e Roger Schmidt foi mais um cometa do que uma estrela, que viu prolongada em demasia a sua estadia em Lisboa – enquanto que o FC Porto manteve Sérgio Conceição durante sete anos, e ainda está por saber quanto tempo durará o consulado de Rúben Amorim em Alvalade. Se isto não for matéria de reflexão na Luz, se Rui Costa não afastar rapidamente o rótulo (provavelmente injusto, mas existente) de presidente hesitante que se lhe colou à pele, os problemas do Benfica, paradoxalmente numa altura em que tem o estádio sempre cheio e uma lista de espera para Red Passes de 20 mil sócios, tenderão a avolumar-se, até uma rotura que desembocará em eleições antecipadas.

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