sexta-feira, 5 de setembro de 2025

JOÃO FÉLIX VS RODRIGO MORA, HISTÓRIAS DE ÁRABES

 


"A noção de finitude não nos larga. Mais dia, menos dia, lá está ela a bater-nos à porta. Inclemente, fria, a lembrar-nos que a madeira arde, o ferro torce e o corpo quebra.
A tragédia no Elevador da Glória voltou a deixar-nos assim. Em alerta. Se um passeio turístico, com menos de 300 metros, é capaz de uma desgraça destas, o que estará de facto do outro lado da fechadura?
Envio um abraço sentido, sinceramente doloroso, a todos os que foram atingidos por este acidente. Que se faça, ao menos, Justiça. De forma rápida e categórica. 
Largo a calçada lisboeta e voo num tapete das mil e uma noites. Para o exotismo da Arábia Saudita, onde sheikhs de fundos ilimitados se entretêm ao leme de clubes de futebol, a comprar e a vender futebolistas milionários, como se trocassem cromos entre amigos.
Se o elevador desfeito nos recorda o mais básico desta vida – não há imortais, ninguém está a salvo do azar, da incúria, do acidente -, o futebol saudita provoca em mim sensações profundamente revoltantes, por responsabilidade das leis estatais e de quem lá mais ordena.
Esta liga de bons rapazes – sugiro o entretido resumo do Al-Taawoun-Al Nassr para quem gosta de sorrir – é a fiel depositária de intermináveis injeções de capital autorizadas pelo fundo soberano.
Mas, dos 18 clubes em prova, apenas quatro são abrangidos pela benevolência tácita deste reino que mais não é do que uma monarquia teocrática.
Não há liberdade de imprensa, não há partidos políticos de oposição, não há garantia de direitos fundamentais – principalmente se falarmos das mulheres e das minorias.
Ora, de forma a maquilhar este sistema político em forma de frankenstein, a família real escolhe o futebol para atrair o olhar do mundo ocidental, aparentando uma normalidade societária que, realmente, só existe na cabeça de uma liderança autocrática e de quem dela beneficia.
Assumo as minhas convicções, pensamentos radicalmente contrários ao que está instalado no poder do mundo saudita - sim, sou progressista, ecologista, humanista. Mas não confundo, por um minuto, os que dele escolhem fugir e que procuram noutros países o bem-estar e a sobrevivência. Esses serão sempre bem-vindos.
Questiono-me, por isso, se alguma vez João Félix, Cristiano Ronaldo e os outros portugueses que por lá andam, a beneficiar e a contribuir para este futebol injetado de hormonas ditatoriais, param para pensar naquilo que os rodeia.
Ou se, simplesmente, escolhem não pensar. É legítimo.
Só querem futebol e dinheiro, mesmo que esse futebol seja paupérrimo e o dinheiro oriundo de um trono truculento.
Aos 25 anos, o requintado futebol de Félix deveria andar a fazer golos na Premier League, na Serie A, ou até no Estádio da Luz. A fase das responsabilidades alheias ficou para trás há muito.
Falhou em Madrid, falhou em Londres, falhou em Barcelona, falhou em Milão e não falhará em Riade porque contra defesas com a solidez de manteiga ao sol – e não falta sol na Arábia Saudita – chegará rápida e facilmente aos 30 golos.
Enquanto admirador do seu talento, lamento. Lamento a fuga para um el dorado desinteressante e aborrecido, onde a equidade e a igualdade de oportunidades só existe para quatro clubes.
Os outros, enfim, fazem-me lembrar os mártires Washington Generals, a equipa que serve de saco de pancada nas digressões dos Haarlem Globetrotters. Figurantes silenciosos.
Posto isto, confesso ter respirado de alívio ao saber que Rodrigo Mora resistiu – pelo menos, por agora – a este chamamento multi-milionário. Na liga saudita teria minutos na relva, sim, e dinheiro para dez vidas. Apenas e só.
Perderia o contacto com o futebol dos grandes logo aos 18 anos, os maiores palcos, as provas europeias, o seu clube do coração e a possibilidade de ser campeão pelo FC Porto. Tudo isto, já agora, a troco de um salário que os comuns mortais jamais terão no saldo bancário. Mora já é muito bem remunerado.
Rodrigo, aproveita o prazer de jogar futebol no sítio certo, de fazeres felizes as pessoas certas, de cresceres rodeado de quem mais gosta de ti e num país onde tens liberdade de elogiar e criticar onde e quando quiseres.
Certamente terás muito tempo de jogo às ordens de Francesco Farioli.
Félix e Mora, os dois fantasistas mais entusiasmantes a sair da formação nacional nos últimos dez anos (junto-lhes Nuno Mendes e Vitinha), continuarão separados por milhares de quilómetros e por convicções ainda mais distantes.
Ainda bem para o Rodrigo, ainda mal para o João.
Fecho o texto a sentir uma profunda revolta e impotência pelo ocorrido ontem em Lisboa, certo de que naquele elevador seguiam pessoas do Bem e felizes por usufruírem de um dia de férias (ou de trabalho) pacífico, numa capital de uma democracia liberal.
O meu máximo respeito por quem partiu e por quem perdeu.

PS: o país ainda recupera do drama pérfido dos incêndios, das perdas avassaladoras, e volta a mergulhar no luto. Impossível pensar só em futebol nestes dias que nos rodeiam. Ainda bem que temos, ao menos, a fantasia de Rodrigo Mora para nos entreter."

Pedro Jorge da Cunha, in ZeroZero

Sem comentários:

Enviar um comentário