"A primeira parte do artigo terminou com estas duas ideias-chave: conviver com os melhores e mais exigentes pode proporcionar mais oportunidades para sermos também mais focados; e os atletas que durante o seu percurso de construção da sua identidade pessoal, social e desportiva tiveram que conviver com dificuldades sociais, económicas e desportivas diferenciadas (o tal desporto de rua, por exemplo) passam por experiências que hoje as academias e os modelos de escolinhas de futebol ou outras modalidades têm dificuldade em formar. Porque, e é preciso que se entenda bem isto, modelar comportamentos retira muito daquilo que apreciamos mas que, incompreensivelmente, é castrado no processo de treino.
Treinar um atleta, especialmente se estivermos a falar de modalidades de confronto directo e em que as acções do outro tenham impacto e possam constringir as nossas, é quase como educar um filho nos dias de hoje: sabemos que a linha que separa o fomento da autonomia a curto prazo está sempre muito próxima do campo de um maior risco de erro e de consequências que possamos enquanto Pais não gostar. A longo prazo sabemos que o nosso filho ficará melhor preparado para os desafios e necessidades que a sociedade trará, mas hoje ou amanhã, se eu tiver a certeza que ele vai fazer os passos que lhe disser, apesar de ser limitativo, traz-me mais segurança enquanto Pai.
A metáfora para os treinadores é igual. Só que os treinadores têm este pensamento quer para os seus atletas de 10 como de 20 anos. A preocupação com o hoje e o amanhã a curto-prazo ocupa mais espaço do que daqui a dez anos (e é compreensível em grande parte, atenção). Ao estarmos a preparar um jovem quase lhe dizendo como fazer e o que tem de fazer, estamos – acreditem – a prepará-lo bastante deficientemente para as tais competências comportamentais e psicológicas que vamos apreciando nos outros.
Está demonstrado em dezenas ou centenas de estudos que o papel do treinador na tal preparação mental do atleta é fulcral. O ideal era que os atletas desenvolvem quase que por magia essas competências. Mas não. O papel do treinador, sendo fulcral, não pode ser desenvolvido nesta área sempre do mesmo modo. Perceber quem vai ser o recetor é um passo essencial. Depois entramos no ‘como’. E no ‘como’, é fundamental assentar o nosso trabalho em três pilares acima de tudo: o que fazemos com o atleta; o que comunicamos para o atleta; e o que provocamos. No que fazemos entramos no campo dos exercícios e nas tarefas que o mesmo pode desenvolver, que sejam mais exigentes ao nível do perceber os constrangimentos à sua volta e, com isso, ter de tomar mais decisões com o que consegue captar do que aquilo que lhe é ‘receitado’. No que comunicamos ou as nossas intervenções têm de ir ao encontro de uma maior proactividade, confiança, em redor das expressões ‘auto’: autoconfiança, automotivação, autonomia e talvez a mais abrangente, auto-organização. Por fim, isto recairá no que lhe provocamos.
Quase poderíamos substituir o contexto desportivo e colocar o educacional ou profissional. Porque na verdade, estas competências são essenciais. E elas tornam-se mais valiosas quanto mais o contexto provocar constrangimentos ou situações, que para alguns atletas ou treinadores são vantagens e para outros desvantagens. Ambientes estáveis não são confortáveis para todos. Para a maioria sim, porque somos educados e formados nesses ambientes. Quantos atletas decidem melhor onde a maioria falha? Quando os acompanhamos de perto e ouvimos as suas expressões, percebemos que não se trata sempre de sorte, não se trata de alguém esquisito, mas provavelmente diferente. E diferente e preparado para suportar constrangimentos e ambientes onde a quantidade de acontecimentos não previstos é maior."
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