terça-feira, 14 de janeiro de 2020

UM HOMEM ESSENCIALMENTE PRÁTICO


"Lembranças de Sven-Goran Eriksson, o treinador que revolucionou o futebol em Portugal. Do seu descaramento divino e da sua profunda tristeza na Luz e em Gelsenkirchen. Sempre educado, sempre contido, fosse o que fosse que lhe ia por dentro

Recordam-se daquele episódio de Os Mais? Obra-prima de humor e do sarcasmo. O ministro está à conversa com o Carlos e com o Ega e, de repente, sai-se com esta pergunta séria, própria de ministro:
- Ò Carlos, você que é um homem viajado, diga-me: em Inglaterra há romancistas de talento, folhetinistas de pulso?
E o Carlos com um descaramento divino
- Pois fique o senhor ministro sabendo que em Inglaterra não há literatura!
O outro, aprovando tamanha sabedoria:
- Logo vi. Logo vi. Um povo essencialmente prático!
Descaramento divino. Uma vez, o Toni, António Oliveira de Mogofores, meu irmão bairradino, coração do tamanho do mundo, estava a contar-me episódios dos primeiros tempos de Eriksson no Benfica e falou-me do jogo inicial dessa edição da Taça UEFA. O Bétis tinha vindo à Luz, saíra de Lisboa com uma derrota aceitável para as suas pretensões (1-2) e prometia sérios sarilhos para o Benito Villmarín, ali na Avenida de Heliópolis, em Sevilha, no jogo da segunda mão. Não havia motivo para euforias no balneário, no gabinete dos treinadores reinava o silêncio, o Toni resolveu puxar pela língua de Sven-Goran, a quem os jogadores tinham posto a alcunha de Periquito, coisa a que ele não achava grande piada. Perguntou-lhe, portanto, o que tinha achado do jogo. E o sueco, com um descaramento divino, igualzinho ao do Carlos da Maia na taramela com o ministro:
- Pelo que estou a ver, temos tudo para ganhar esta taça.

Tristeza a dobrar
O bom do Toni ficou meio sem jeito. O Benfica não sabia o que era um final europeia desde 1967, já íamos em 1982, nada levava a crer que esse fosse o ano da retoma, ainda por cima depois de um resultado desiludente em casa contra um adversário forte.
Pois o Periquito estava-se um bocado nas tintas para essa idiossincrasia tão lusitana de esperar sempre pelo pior antes de desejar o melhor. Uma espécie de medo de ser feliz, ou coisa que o valha. Quinze dias depois foi a Sevilha ganhar outra vez por 1-2 e iniciou um percurso de luxo que só soube o que era a derrota na primeira mão da final, em Bruxelas, frente ao Anderlecht.
Convenhamos que Eriksson limpou a cabeça do futebol em Portugal. Depois da revolução de mentalidade que impôs no Benfica, ela alargou-se a todo o país, e basta ver os resultados europeus das equipas portuguesas e da selecção nacional nos anos imediatos.
Conheci bem Sven-Goran Eriksson e vivi com ele momentos interessantes. E vi-o perder muito do seu descaramento divino nos corredores do Estádio da Luz e de Gelsenkirchen. A primeira vez em 2004, depois do fantástico Portugal - Inglaterra decidido com a penalidade de Ricardo. A segunda, em 2006, nos quartos-de-final do Campeonato do Mundo. Eu trabalhava na selecção nacional e, no final de outra decisão por grandes penalidades, encontrei-o à porta do balneário dos ingleses. É preciso dizer que esses ingleses não eram tão essencialmente práticos como o ministro do Eça de Queirós queria crer. Tremiam como varas verdes em frente do Ricardo, que defendeu três. Uma barbaridade! Eriksson estava deprimido como nunca o tinha visto. Percebera que o seu ciclo à frente da equipa da Inglaterra tinha chegado ao fim. E Portugal, o país cujo futebol ajudara tanto a evoluir, era o responsável por isso. Ficámos um bocado calados, eu a entender a sua angústia, tal como tinha acontecido dois anos antes. Um episódio que se repetia. A minha alegria contida para, de alguma forma, respeitar a tristeza de um amigo. Depois ele limitou-se a dizer:
- Bom. Calculo que esta tenha sido uma despedida. Não devemos voltar a encontrar-nos noutra situação igual. Duas são suficientes para mim.
Apertámos as mãos num magnífico shake hands. Era a sua forma de mostrar consideração. Nunca gostou de grandes manifestações de ternura. Enfim: um homem essencialmente prático."

Afonso de Melo, in O Benfica

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