"'As pessoas são felizes, conseguem o que querem e nunca querem aquilo que não podem obter.' (Aldous Huxley)
Está nos manuais que um programa de desenvolvimento estratégico terá de responder às perguntas «o quê?», «como?» e «porquê?», mas que também terá de contemplar o «por quem?», «onde?» e «quando?» para além do «para quem?» e «para quê?». Está nos manuais que uma declaração de intenções não é um programa, porque de boas intenções…
Que desporto teremos nos próximos quatro anos? Quando em relação ao enorme potencial da diáspora portuguesa se pretende “reforçar o apoio ao associativismo e aos projetos de educação, cultura, desporto, apoio social e combate à violência de género desenvolvidos nas comunidades” e quando se pretende “potenciar o contributo do desporto, concentrando a sua atuação em dois objetivos estratégicos principais: a) afirmar Portugal no contexto desportivo internacional e b) colocar o país no lote das quinze nações europeias com cidadãos fisicamente mais ativos, na próxima década” não estamos a passar de uma mera declaração de intenções. «Reforçar», «potenciar», «afirmar» e «colocar» são sintomas a prazo, logo, semântica colocada no capítulo dos objectivos… no âmbito do que se visa (sem se ter a certeza de) atingir…
São objectivos perfeitamente lícitos dentro de uma certa ortodoxia. No entanto George Orwell (1) afirmava que “a ortodoxia significa ausência de pensamento: ausência da necessidade de pensar.” E Ernest Hemingway (2) dizia-nos que “vira o mundo modificar-se tanto! Não apenas em acontecimentos, embora tivesse tomado parte em muitos deles e observado muito gente, mas também assistira a modificações mais subtis e recordava-se de como as pessoas eram diferentes, conforme as ocasiões.”
Bons objectivos não salvam a imagem por causa da mulher de César... não lhe basta parecer, tem de ser! Não há ética que vingue sem uma estética em que se apoie e lhe dê guarida, tal como não há estética que não pertença à ética. Não há uma ideologia que singre sem a pragmática correspondente.
E por que motivo? Porque, como também nos diz Eduardo Lourenço (3), "pode discutir-se se a desordem em que estamos mergulhados – desde a económica até à da legalidade e da ética – releva ou não, em sentido próprio, do conceito de caos. Do que não há dúvidas é de que o habitamos como se fosse o próprio esplendor."
Por que pensar o futuro (só sonhos!) enquanto se descura o presente? Responde-nos o Director (4) de Aldous Huxley: “E é aí que está o segredo da felicidade e da virtude: gostar daquilo que se é obrigado a fazer.”
E se é premente e salutar conhecermos esses objectivos, não é menos preocupante o facto de não conhecermos o «como»… pois primeiramente teremos de compreender esse «como»… até porque o Winston de Orwell dizia-nos “compreendo COMO; não compreendo PORQUÊ.” Do mesmo modo que o Rubachov de Arthur Kloester (5) primeiramente quis perguntar “porquê” mas decidiu perguntar “COMO?” para logo a seguir lançar a interrogação “PORQUÊ?”
E o «porquê» traz-nos a prerrogativa da validade e da fiabilidade daquilo que se pretende ou daquilo em que se aposta. E ao mesmo tempo não só a sua justificação mas também a sua razão de ser! “Se bastasse fazê-lo… depressa ficaria terminado! Se, ao dar esse golpe, se atalhassem as consequências e o êxito fosse seguro… lançar-me-ia de cabeça do alto do escolho da dúvida para o mar de uma existência nova!” (Macbeth, VII, 1).
Se atentarmos que para alcançar estes dois grandes objetivos atrás enunciados, a) e b), é necessário “elevar os níveis de atividade física e desportiva da população, promovendo o desporto escolar e os índices de bem-estar e saúde de todos os estratos etários; continuar a promover a excelência da prática desportiva (…); impulsionar programas de seleção (…); promover a articulação entre o sistema educativo e o movimento desportivo; promover a conciliação do sucesso académico e desportivo (…); criar instrumentos que garantam a atletas olímpicos e paralímpicos [certas regalias]; promover a cooperação entre autoridades, agentes desportivos e cidadãos, com vista a erradicar comportamentos e atitudes violentas, de racismo, xenofobia e intolerância em contextos de prática desportiva, do desporto de base ao desporto de alto rendimento”… muito trabalho haverá a fazer e muitos meios a mobilizar. Mas terá de haver capacidade e competência para isso! E atente-se que muitos são os «objectivos» (elevar, promover, impulsionar, criar) para alcançar esses dois «objectivos»!
Sempre a corrupção, a violência, o racismo e a xenofobia no desporto (poderemos acrescentar o doping), mas nunca a morbilidade perene, a exploração infantil (mesclada de treino intensivo precoce), o suicídio dos desportistas, a morte súbita, e muito menos o regime dos seguros dos desportistas, a regulação das carreiras duais, o regime fiscal de profissionais de desgaste rápido ou até o próprio Regime Jurídico das Federações Desportivas… E, recorrendo de novo ao Rubachov de Kloester, “ai dos loucos e dos estetas que só perguntam como, e não porquê.”
E se se torna premente “continuar a reabilitação do parque desportivo, (…); promover a coesão social e a inclusão, incentivando a generalização de oportunidades de prática desportiva em condições de igualdade, garantindo a acessibilidade a espaços desportivos para pessoas com oportunidades reduzidas, pessoas com deficiência ou incapacidade e grupos de risco social; promover uma estratégia integrada de atração de organizações desportivas internacionais para a realização em Portugal de eventos de pequena e média dimensão (estágios, torneios, conferências) e de promoção de Portugal enquanto destino de Turismo Desportivo, otimizando os recursos existentes e capitalizando as condições privilegiadas do país; continuar o combate à dopagem, à manipulação de resultados ou qualquer outra forma de perverter a verdade desportiva”, «elevar», «impulsionar» e «promover» continuam no âmbito dos objectivos… enquanto o «continuar» pressupõe um passado que tende a projectar-se no futuro…
Hannah Arendt (6) traz-nos Tocqueville através de uma frase que nos faz reflectir: “Desde que o passado deixou de projectar a sua luz sobre o futuro, a mente humana vagueia nas trevas.” O passado tem servido sempre para ser visto como um conjunto de factos ou acontecimentos em que nos devemos basear a fim de que os erros então cometidos sejam corrigidos e não mais repetidos no presente ou no futuro. O passado tem servido sempre para nos aperfeiçoarmos, para evoluirmos. Mais do que projectar a sua luz, o passado tem sido sempre uma sombra que nos tem acompanhado, mas que progressivamente se tem dissipado... “Uns, o medo físico calava-os (…); outros esperavam salvar a cabeça; (…). Os melhores de entre eles mantinham-se calados (…). Estavam emaranhados no seu próprio passado, eram presa da teia que eles mesmo tinham tecido segundo as leis da sua própria ética tortuosa e da sua tortuosa lógica (…)” diz-nos Kloester.
Que desporto teremos nos próximos quatro anos? Um desporto em que deveria estar presente a voz do Beduno de João Aguiar (6): “menos ardor e mais estratégia!”. Está tudo na literatura, alguém disse! A Oeste nada de novo… e a Leste também não!!!"
Armando Neves dos Inocentes, in A Bola
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